Com o céu na boca e o mundo no coração


Obra premiada do escritor paraibano Gael Rodrigues, A Menina Que Engoliu o Céu Estrelado encanta leitores de todas as idades é uma experiência perfeita para leitura conjunta em família. Foto: Drica Mendes/Acervo Pessoal.

Por Drica Mendes*

Você se lembra da última vez que leu uma obra de literatura infantil, que não tenha sido para a cria, os sobrinhos ou um (a) afilhado (a)?

E se os adultos se libertassem da “vergonha” de escolher livros de temáticas infantis e mergulhassem numa leitura cheia de referências e de lições válidas a qualquer tempo e todo lugar?

Temos aqui uma indicação que cai como uma luva para essa aventura. A Menina Que Engoliu o Céu Estrelado (Companhia Editora de Pernambuco - Cepe Editora, 72 páginas), escrita por Gael Rodrigues e ilustrada por Renato Alarcão, é uma estória que traz reflexões, lirismo e beleza de forma leve e envolvente.

Acompanhamos a jornada de Jurema, uma menina apaixonada pelo céu, que se deixa encantar pela abóbada celeste por hora afim. Um dia, após um tropeço, acaba por abocanhar todo o céu, com estrelas, lua e tudo, o que deixa o mundo num dia interminável, com muita luz, calor e a impossibilidade do repouso, do recomeço diário.

Diante da dificuldade que seria viver continuamente sob um sol escaldante, Jurema sai para uma viagem na companhia de seu melhor amigo, Damião, um bode falante e muito sábio, em busca do pai, que trabalha e mora na cidade grande e que, certamente, terá solução para o tal imbróglio. 

O trajeto traz diversos desafios e uma série de personagens curiosos que cruzam o caminho de Jurema e Damião e dão pistas do que acontece na capital e de como o mundo como ela conhece corre riscos, para além de sua situação específica de estar carregando o céu dentro da boca.

Uma mulher peixe com duas cabeças, um vaqueiro mudo montado num burro falante e um senhor míope cuidando de um jardim de flores de fuxico são figuras que estão no caminho da protagonista e trazem todos suas experiências com um misterioso ser conhecido como Cabeção.

A escrita de Gael faz o enlace do tom fantasioso da cultura nordestina, ao mesmo tempo em que traz uma universalidade à narrativa, que trata de trocas afetivas, determinação pela busca de mais e o poder da verdadeira amizade.

Os elementos folclóricos se apresentam como referência, como é o caso da quase-sereia (já que ela, ou elas, vivem em cima de uma pedra seca, sem perspectiva de voltar à vida na água) e do vaqueiro com seu burro falante. Não é difícil relacionar esses personagens com a tradição das estórias do Nordeste brasileiro, aspecto em que o autor revisita suas raízes nordestinas, dando a elas voz lírica, cheia de cores.

Todos esses ingredientes dão à obra vocação a se tornar um instrumento de interação entre adultos e crianças. O próprio autor declarou em entrevista à época do lançamento do livro, que pensou nessa conexão quando concebia a estória. “Tem várias questões no livro que eu imaginei que um pai lendo para o filho também vai aprender muitas coisas, então, pensei muito sobre isso, para ser uma leitura compartilhada em que o adulto também aprenda com Jurema, ou com o próprio filho”, destacou Gael.

Além dessa conexão regional, o aspecto universal também está presente na narrativa. Ao passo em que a estória se desenvolve, percebemos a leitura crítica do acerca do modo de vida corrido e impessoal das grandes cidades. Há um holofote sobre a importância de se restabelecer vínculos emocionais e humanos com quem está a nossa volta. 

Ainda que o tema possa parecer árido, Gael entende que seja importante para o público juvenil. “Estabeleci uma relação crítica quando falo de uma supervalorização do dinheiro em detrimento das relações humanas, de tecnologias desumanizantes ou da hipervelocidade dos centros urbanos, coisas cada vez mais evidentes”, defendeu o escritor.

A riqueza imagética da obra é outro ponto positivo. Os traços do ilustrador Renato Alarcão (responsável por ilustrar também “A Coisa Brutamontes”) dá a estória a força, as cores e a delicadeza que ela merece. A capa do livro, uma alusão à “A Noite Estrelada”, obra do pintor holandês Vincent van Gogh, é um convite e tanto, aos olhos e ao coração, para acompanhar as aventuras de Jurema e Damião. 

Prêmios

Gael Rodrigues é natural de Itabaiana, na Paraíba. Vencedor em 2018 do I Prêmio Cepe Nacional de Literatura Infanto Juvenil, concorrendo ao prêmio com mais de mil escritores do Brasil, além de brasileiros residentes no exterior e estrangeiros naturalizados brasileiros.

Também foi vencedor do Prêmio Literário da Fundação Cultural do Pará, em 2017, com o romance Terra laranja, finalista do Prêmio Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil.


Trecho do livro

“A Capital, porém, continuava quente. Cada vez mais quente. O céu estrelado ainda dentro da boca de Jurema. Ela explicou para o pai ele não soube o que fazer. Mas deviam voltar para casa. Acontecesse o que acontecesse, mesmo que a noite não voltasse mais, ficariam juntos” 

*Drica Mendes é brasiliense, escorpiana, jornalista de formação, traça de livros, cinéfila de plantão e fã de gatos. Nas horas vagas faz tricô, crochê e costura. Escreve mensalmente no Cultura Sem Censura sobre literatura.