Crítica: Torto Arado - A voz dos silenciados no Brasil profundo


Itamar Vieira Junior conquista crítica e púbico com sua prosa melodiosa, que traz a narrativa do amor de duas irmãs e expõe as feridas abertas do país que ainda guarda características coloniais. Foto: Divulgação.

Amigos, é com grande alegria que anuncio a chegada de uma colaboradora aqui no modesto Cultura Sem Censura: Drica Mendes.

A super Drica vai escrever sobre (mas não somente) literatura aqui no blog a partir de hoje, com uma coluna mensal sobre o tema.

Conheço a Adriana já alguns anos, das nossas andanças pelos mundos da assessoria de imprensa. Sem mais delongas, fiquem com a belíssima estreia da Drica aqui no espaço. Bem-vinda!😀😀

Por Drica Mendes*

Basta a leitura do primeiro capítulo de Torto Arado para ser fisgado pela estória das irmãs Bibiana e Belonísia. Ambientado no coração do sertão baiano, o romance perpassa as vidas das duas protagonistas, da infância à maturidade, tratando de vida e morte, amor e luta. Ainda crianças, as irmãs encontram uma faca antiga e misteriosa em uma mala que pertence à avó. A curiosidade leva a um acidente que vai marcar para sempre a relação entre as duas, fazendo que elas dividam a mesma voz.  

A sensibilidade e a força, de forma simultânea, com que os personagens são retratados é um dos pontos fortes do texto. Nessa fotografia do Brasil rural, que nunca deixou de ser colonial, produzida por Itamar Vieira Junior, conhecemos intimamente essa população esquecida pelo estado e abusada pelo poder do dinheiro de proprietários de terras. 

O grande trunfo de Torto Arado é dar voz e forma aos invisíveis sociais, de forma complexa e verdadeira. Seus méritos foram reconhecidos internacionalmente, quando o título foi vencedor do prêmio Leya em 2018 e dos prêmios Oceanos e Jabuti em 2020. O livro já teve mais de 70 mil cópias vendidas em todo o mundo. 

O autor, baiano de nascimento, geógrafo de formação e funcionário do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) vem construindo suas narrativas alimentadas por suas referências de vida. Na periferia de Salvador, onde cresceu, adiou seu sonho de ser escritor por falta de incentivo. Se formou em Geografia, e tornou-se Doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). 

Alguns elementos da inspiração do romance vieram do contato que Vieira Junior teve com comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e assentados no sertão da Bahia e do Maranhão, durante sua pesquisa e do trabalho no Incra. Os ritos do Jarê, religião de matriz africana existente somente na região da Chapada Diamantina, e que é significativamente menos conhecida do que o Candomblé e a Umbanda, são, por exemplo, parte importante da narrativa.  

Autor de outros dois livros, ambos de contos:  Dias (Caramurê Publicações, 2012) e A Oração do Carrasco (Mondrongo, 2017), para o seu primeiro romance, Itamar bebeu da fonte de escritores regionalistas, como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz, mas ele também credita sua inspiração a textos de Machado de Assis, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus e Raduan Nassar, esse último, inclusive, citado na epígrafe do livro, com a passagem de Lavoura arcaica: 

"A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família [a terra]; existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor trabalho, tempo”. As obras se encontram em vários pontos, como na construção da memória afetiva a partir da terra, do regionalismo amarrado ao universal na narrativa, da força da família, da construção da identidade e da religiosidade, tudo em uma narrativa que harmoniza o político e o lírico. 

Torto Arado é uma ode verdadeira, crua e poética da realidade daqueles que existem, mas que não são vistos ou ouvidos, mas ainda assim, sobrevivem e movem o Brasil. 

*Drica Mendes é brasiliense, escorpiana, jornalista de formação, traça de livros, cinéfila de plantão e fã de gatos. Nas horas vagas faz tricô, crochê e costura.