Autor fala sobre Gastura, obra que combina autobiografia com fatos históricos. Foto: Divulgação.
Imagine passar por grandes momentos de mudança no Brasil e no mundo? Esta é a premissa do livro Gastura (Editora Labrador), de Fernando Machado.
A obra, misto de ficção e autobigrafia, traz experiências pessoais do autor misturado à fatos históricos, como a Ditadura Militar.
Para entender um pouco como Machado construiu a obra, conversamos, por e-mail. Confira a entrevista abaixo.
Cultura Sem Censura - O que o motivou a escrever Gastura neste momento de sua vida?
Fernando Machado - Escrevi Gastura aos 75 anos, depois de atravessar as trilhas da memória — dos sete aos cinquenta e sete anos —guiado por dezoito meses de terapia de regressão. Das anotações colhidas ao longo do processo terapêutico, nasceu um inventário moral, minucioso e destemido, moldado à semelhança dos preceitos de Alcoólicos Anônimos. Ao entrelaçar esse inventário a um almanaque de acontecimentos histórico — sociais, políticos, criminais, musicais, esportivos e etc. — encontrei o fio necessário para tecer o livro.
CSC - Como foi revisitar memórias tão intensas, especialmente ao alcoolismo e à busca pela sobriedade?
Fernando - A memória, essa velha aliada poderosa, nunca me falhou — e, dessa vez, foi decisiva. Não precisei vagar muito para reencontrar os momentos essenciais. As emoções, no entanto, corriam em fluxo contrário: ora a depressão me arrastava, ora a euforia me elevava, ambas se desenrolando no espaço seguro do ambiente terapêutico. No que toca ao alcoolismo e à longa travessia pela sobriedade, não faltaram ecos: eram informações demais, sedimentadas em trinta e três anos de abstinência e quase vinte de convivência diária nas salas de recuperação do AA.
CSC: O título Gastura carrega uma força simbólica. Como você o escolheu e o que ele representa para você?
Fernando - Em Camaçari, na Bahia, ouvi certa vez uma garotinha, filha da cozinheira da obra onde eu trabalhava, dizer que sentia uma "gastura". A palavra, até então desconhecida para mim, ficou adormecida na memória — e, quase cinquenta anos depois, eclodiu, dando nome às doenças que eu carregava na época; sem saber como chamá-las, dizia apenas que estava com uma gastura. Como o livro nasceu no consultório de terapia, entre dores físicas e mentais expostas, decidi que Gastura seria o seu nome.
CSC: Como a sua experiência com os Alcoólicos Anônimos transformou sua vida e influenciou a forma como você narra sua trajetória no livro?
Fernando - A experiência foi tão crucial que a dedicatória do livro foi dirigida aos companheiros dos grupos de AA. Na prática, entreguei minha vida antiga para receber outra, guiada pelos princípios e tradições da Irmandade. Por isso, o inventário nos moldes do Quarto Passo de AA acabou por nortear toda a narrativa da minha história.
CSC: O livro mescla memórias pessoais com eventos marcante. Como você escolheu os acontecimentos que aparecem na obra?
Fernando - Num primeiro momento, escolhi eventos marcantes dos quais participei, direta ou indiretamente. Assisti pessoalmente à atriz mirim Sônia Maria Dorse, vestida de índio, anunciar a chegada da televisão no Brasil — e, dezenove anos depois, vi o astronauta Neil Armstrong dar os primeiros passos na Lua, pelo mesmo modelo de televisão anunciado por ela. Com essas e outras células de memória nas mãos, vasculhei os acontecimentos ao redor, buscando os que fossem reconhecíveis para a maioria da população da época.
CSC: Quais foram os maiores desafios ao combinar autobiografia com um almanaque histórico?
Fernando - As datas. Eu não queria marcá-las de forma rígida. Preferi traçar uma linha de tempo, por onde pude costurar lembranças: a proximidade do meu primeiro casamento ao assassinato de John F. Kennedy em Dallas; o nascimento do meu primogênito à posse do marxista Salvador Allende no Chile; ou ainda a minha formatura em Engenharia Civil, no Mackenzie, ao primeiro grande sucesso de Caetano Veloso com a música Alegria, Alegria, marco inicial da fase tropicalista na música brasileira.
CSC: Em Gastura, você fala sobre relações familiares. Como foi abordar essas memórias tão íntimas?
Fernando - Desde a primeira página do inventário — que, por mero acidente de percurso, acabou se convertendo em livro — tracei a decisão de examinar minha vida de forma profunda, minuciosa e destemida, respeitando a premissa de não causar dano a ninguém e, quando necessário, oferecer desculpas sinceras. Ao considerar a transformação do inventário em livro, compreendi que, caso precisasse alterar o conteúdo, preferiria não publicá-lo. Abordar memórias íntimas, para mim, não é um gesto ocasional, mas um compromisso contínuo com a segurança e o respeito. *
*Cheguei ao fim sem saber se, daquele inventário, nasceria um livro. Nas palavras finais, registrei: “...um dos caminhos poderia levar-me à publicação deste inventário, transformando-o num livro. Gastura literária!”
CSC: O que você aprendeu sobre si mesmo ao escrever este livro?
Fernando - Como se não bastasse aprender a escrever uma peça literária — com começo, meio e fim —, aprendi também, durante a terapia, a fechar portas dispersas no caos da minha memória, portas que estavam apenas entreabertas. Isso me ensinou que, independentemente da idade ou de outras condições sociais, sempre é possível realizar algo, por mais difícil que possa parecer. Com disciplina, determinação e confiança, voltei a enfrentar desafios: publiquei mais um livro, depois outro, e agora estou escrevendo o quarto — em cada tema, vou me desvendando mais e mais.
CSC: Que papel a escrita teve no seu processo de cura e superação?
Fernando - A cura e a superação de meus males começaram quando eu era um jovem adulto e seguem até hoje, em sessões terapêuticas cíclicas, com psicólogo ou psiquiatra. É um processo em aberto — e não vislumbro, talvez nem queira vislumbrar, um ponto final. Sinto-me numa escada sem fim: não há como permanecer parado; se não avanço, começo a retroceder. A bola da vez é a escrita criativa e o relacionamento ativo com meu cão, a quem dedico minhas horas para escrever um livro chamado O velho e o cão, no qual é ele, o cão, quem assume o protagonismo, narrando à sua maneira como tenho me comportado no dia a dia.
CSC: Gastura pode ser visto como um testemunho de recomeço. Que conselhos você daria a quem está em busca de um novo começo?
Fernando - Gastura pode ser entendido de várias maneiras: como foi viver, em 1968, aos vinte e cinco anos de idade, em meio a problemas, emoções e a uma mudança extraordinária na forma de pensar e de viver, diante da profunda transformação social daquele tempo. O recomeço, na realidade nunca foi um momento único ou testemunhado de forma explícita — acontecia diariamente, narrados em segundo plano pelos setenta fatos históricos que atravessa o livro. Quem nunca pensou em recomeçar a vida, em outro lugar, com outra identidade e outra profissão? Essa ideia, que trato de forma romanceada em meu segundo livro, Phenix, nasceu da inspiração da ave mitológica que se imola e renasce das cinzas. Leia esses livros — e tantos outros — e chegue à sua própria concepção.
CSC: Que mensagem você espera deixar aos leitores que também enfrentam lutas internas, como o vicio ou questões emocionais?
Fernando - Assista a uma reunião num dos grupos de Alcoólicos Anônimos, mesmo que não se considere alcoólatra, e verá: lá ninguém dá conselhos ou palpite na vida dos outros; apenas se mostram com sinceridade. Diante dessas pessoas, depois de algum tempo, você saberá quem foi, quem é e quem deseja ser.