Crítica: A Filha Perdida - O secreto revés da maternidade

 

Livro que inspirou o filme da Netflix escancara as dores e pressões vividas pelas mães. 

Foto:Acervo Pessoal/Drica Mendes.

*Por Drica Mendes

Antes de se tornar um dos filmes mais reproduzidos em serviços de streaming mundo a fora , A Filha Perdida (disponível na Netflix), terceiro livro da misteriosa escritora italiana Elena Ferrante, já tinha uma numerosa base de fãs.

Agora, com o sucesso do longa (cotado ao Oscar), a obra desperta mais curiosidade e conquista novos leitores neste início de 2022. Publicado originalmente em 2006 - e só traduzido para o português em 2016 - , o livro mostra a forma singular como Ferrante trata recorrentemente a questão da maternidade real, sem filtros, com uma escrita instigante, motivos pelo qual o livro tornou-se uma febre entre leitores de todos os perfis. 

Como acontece em todos os livros da autora, esse também é narrado em primeira pessoa, desta vez, por Leda, uma professora universitária prestes a completar quarenta e oito anos. Após a mudança das duas filhas para o Canadá, onde vão morar perto do pai, a protagonista vai a uma ilha italiana para aproveitar suas férias e a liberdade recém conquistada, ao mesmo passo que se sente ressentida pelo vazio deixado pelas meninas.

Durante suas idas à praia, Leda acaba se deparando uma barulhenta família, que quebra sua rotina e a tranquilidade que ela esperava ter nas férias. No grupo, a jovem Nina e sua filha Elena acabam chamando atenção de Leda, que passa as observar, se identificando com algumas mecânicas do relacionamento de mãe e filha. 

Um episódio em que Leda ajuda a encontrar a pequena Elena, após a menina ter se perdido na floresta próxima à praia, acaba por aproximar as duas mães, que desenvolvem um relacionamento de amizade instantânea. O sumiço da boneca preferida de Elena, Mina, durante a busca, torna-se um elemento de mistério que passa a integrar a narrativa. 

Essa situação desencadeia, por meios de flashbacks, memórias em que a narradora/protagonista revisita o período em que a sobrecarga de trabalho acadêmico, estudos e a criação das filhas a colocam em uma encruzilhada na qual ela precisa fazer escolhas difíceis. Com maestria, Ferrante constrói ao longo de todo o texto representações das relações entre mulheres: consigo mesmas, com o mundo, com outras mulheres, e, especialmente, relações entre mães e filhas, usando inclusive mecanismos como os “duplos” das personagens, de forma que o leitor identifica rimas narrativas na estória.

Ora como filhas, ora como mães, suas personagens são confrontadas pelo tema da maternidade de maneira recorrente e inquietante, como raras vezes encontramos na literatura. A sinceridade de Leda chega a ser desconcertante. Seria muito “fácil” cair na armadilha de colocá-la como uma mulher má ou pouco maternal, caso ela não fosse tão real. Os questionamentos sobre sua maternidade não anulam o amor e a preocupação que ela tem com as filhas em momento algum. A narradora enfrenta esse papel de maneira lúcida. Ela e as outras mulheres retratadas não são pessoas que surtam por nada, não há exageros de uma mente feminina ociosa, mas sim mulheres que lutam por manter as identidades que construíram, após se tornarem mães.

O texto trata com clareza e de forma mordaz aquilo que ainda hoje evita-se falar abertamente para evitar julgamentos: o cansaço, o desespero, a falta de amor incondicional pelos filhos. Leda, por exemplo, não é uma mulher insensível, mas realista. Ela vê em suas filhas defeitos que julga serem reflexos de seus próprios defeitos, e reconhece seus erros, assumindo que ser mãe não a transforma em uma santa. Já antes do nascimento das herdeiras, Leda era uma mulher com carreira acadêmica, dona de sua própria história.

A Filha Perdida pode ser um soco no estômago do leitor. Mas o texto indefectível e a verdade incontestável entregues por Ferrante são recompensas justas pelo peso da realidade descrita em suas páginas. 

O mistério por trás de Elena Ferrante 

Sobre a autora, se o leitor não souber de quem se trata, não se sinta só. Na verdade, pouquíssimas pessoas sabem quem ela realmente é. Elena Ferrante é um pseudônimo, e a pessoa real por trás do nome é um enigma. O jornalista italiano Claudio Gatti se debruçou em investigar a identidade da misteriosa escritora e afirmou saber quem ela é, após uma investigação que causou muita controvérsia – mas a informação não foi confirmada por ela.

Mesmo com tanto mistério, Elena Ferrante foi considerada em 2016 como uma das pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Seu trabalho mais conhecido, a Tetralogia Napolitana (formada pelos livros A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem foge e de quem fica e História da menina perdida, todos publicados no Brasil), teve seus direitos comprados pela HBO e está sendo transformada em série. A primeira parte já está disponível na plataforma. 

Trechos do livro 

“Que bobagem é pensar que é possível falar de si mesmo aos filhos antes que eles tenham pelo menos cinquenta anos. Querer ser vista por eles como uma pessoa e não como uma função. Dizer: sou sua história, vocês começam comigo, escutem, pode ser útil.”

“O corpo de uma mulher faz mil coisas diferentes, dá duro, corre, estuda, fantasia, inventa, se esgota, enquanto isso, os seios crescem, os lábios do sexo incham, a carne pulsa com uma vida redonda que é sua, a sua vida, mas que empurra você para longe, não lhe dá atenção, embora habite sua barriga, alegre e pesada, desfrutada como um impulso voraz e, todavia, repulsiva como o enxerto de um inseto venenoso em uma veia.”

*Drica Mendes é brasiliense, escorpiana, jornalista de formação, escritora, traça de livros, cinéfila de plantão e fã de gatos. Nas horas vagas faz tricô, crochê e costura. Escreve mensalmente sobre livros no Cultura Sem Censura.