Crítica: “A Sereia da Floresta”


HQ de Hiro Kawahara caminha entre a beleza de cenas suaves e a potência de cenas sanguinárias. Foto: Divulgação.

*Por Larissa Dias

A obra "A Sereia da Floresta", lançada em 2021 por Hiro Kawahara, traz a história de uma sereia cujo povo é dizimado e ela se torna a única sobrevivente. Em um momento de agonia e dor, ela aceita mudar de corpo e viver uma nova vida, como uma híbrida de humana.

A HQ incialmente faz referência ao mito grego das sereias, seres femininos metade humano e metade peixe. A mitologia grega tem também a figura do tritão, um homem metade humano e metade peixe. No entanto, nesta história, as sereias não têm machos para se reproduzirem.

A mitologia que envolve as sereias mostra sua beleza e capacidade de sedução tanto pela aparência como também pela sua belíssima voz. O mito grego de Ulisses conta que, enquanto navegava com seus marinheiros, ele foi ensinado pela feiticeira Circe como se proteger das sereias, amarrando-se no mastro do navio e tapando os ouvidos com cera, o que os impediu de saltar para a morte certa no mar. 

O afogamento simboliza o inundar-se pela água, que também representa nossos sentimentos, que nos sufocam e nos impedem de respirar, de tomar ar e ver com a clareza da razão. No mito, as sereias são responsáveis pela morte certa.

Porém, essa HQ traz uma outra figura temida do feminino, a “bruxa”. Na mitologia das bruxas, encontramos diversas figuras divinas, como a grega Hécate, a eslava Baba Yaga e a egípcia Ísis, por exemplo, todas elas mulheres com poderes extraordinários e com muito conhecimento sobre a vida e também sobre a morte. Ao longo da história, as mulheres acusadas de bruxaria eram as erveiras, parteiras e curandeiras de suas aldeias, aquelas que usavam os poderes da natureza para a cura. Além disso, foram chamadas de bruxas também as mulheres inteligentes, fluentes em matemática, astronomia, medicina e outras áreas nas quais as mulheres não eram bem quistas. Durante o período da Santa Inquisição, que durou mais de seiscentos anos, instalou-se uma loucura febril entre os membros do clero, que matavam indiscriminadamente mulheres, crianças, homens, mas principalmente as mulheres, que sofreram perseguições, torturas e mortes terríveis, todas acusadas de bruxaria, que quase sempre envolviam a sedução dos homens e pactos com o demônio.

A HQ apresenta a história de Brissen, a sereia transformada, e de Kui, a astrônoma, médica e alquimista persa. Os persas acreditavam nos “dev”, seres celestiais e sagrados que, após a reforma religiosa de Zaratustra, passaram a ser considerados demoníacos. Angra Mainiu foi um dev que passou a ser considerado o símbolo do mal após a reforma religiosa.

Kui é uma jovem solitária e bondosa, que usa seus conhecimentos para curar e proteger uma sociedade que a despreza e persegue. Quando encontra Brissen e percebe quem ela é, passa a protegê-la, a salva e começa a amá-la. Porém, a natureza das sereias traz certos infortúnios para esse amor, criando condições adversas a essa relação interessante, sensual e potencialmente problemática.

Em uma mitologia que une duas figuras enigmáticas do feminino, essa HQ é transformadora, pois caminha entre a beleza de cenas suaves e a potência de cenas sanguinárias. Dor e fantasia caminham juntas nestas páginas para mostrar o ciclo de existência em cada forma particular de vida, que, mesmo existindo em outro habitat, não perde a sua essência.

*Larissa Dias é Psicoterapeuta e Orientadora profissional, escritora e mitóloga.